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Marina Freire
Juíza de Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP)
Artigo publicado no Estadão (9/1/2021)

Há algumas décadas, e especialmente nos últimos anos, a desigualdade de gênero vem tomando a pauta dos mais acalorados debates.

O tratamento diferenciado sem fundamento das mulheres demonstra que temos muito ainda a avançar.

As mulheres possuem inúmeras dificuldades no acesso aos postos de trabalho, assim como aos melhores salários, por diversos fatores, no entanto, o assunto por vezes é tomado como uma situação que será amenizada com o tempo, de acordo com as políticas públicas que estão sendo realizadas.

Muitos vêm a questão como uma luta da mulher pelos seus próprios direitos, de reconhecimento pelo seu trabalho e por seu empenho, algo atinente tão somente ao universo feminino.

Porém, essa visão é extremamente tacanha do verdadeiro sentido pelo qual as mulheres devem ocupar os mais diversos cargos nas mais variadas situações, pois isso não representa um desejo apenas íntimo, mas sim o reflexo de uma sociedade plural.

Se as mulheres constituem mais de 51% da população mundial, o fato de representarem, em media 21% dos cargos de poder, 25% os cargos políticos, mostra que a democracia não é efetiva, ao contrário, é falaciosa e obsoleta, e as leis e atos normativos advindos dessa situação não conseguem espelhar o anseio real da comunidade.

Isso foi combatido e explorado à exaustão quando do caso Duren v. Missouri pela notorious RBG, quando ainda advogada, defendeu a inconstitucionalidade da lei que dispensava as mulheres de participarem do júri popular apenas por ostentarem a condição do sexo feminino e uma pseudovulnerabilidade, no sentido de a permanência durante os trabalhos do julgamento poderia prejudicar sua vida familiar e seus afazeres como mãe e mulher. Dessa forma, a resposta dos jurados não demonstrava efetivamente a aprovação ou desaprovação daquela sociedade, pois apenas parcela de seus integrantes conseguia fazer valer seus pensamentos.

Embora a lei a priori fosse no sentido da existência de um privilégio, em verdade, tratava-se de algo pernicioso a todos, uma vez que destoava do que a maioria real poderia decidir.

Essa análise ultrapassa o fundamento da maioria pela maioria, não menos importante, contudo insuficiente, para que as mulheres alcancem sua real representatividade.

Não obstante, caso essas justificativas não se mostrem capazes de incutir no leitor esse desejo de mudança, ainda há algo mais contundente.

As mulheres não devem ocupar cargos de poder tão só porque conseguem, ou por não serem diferentes dos homens, ou por tornar reflexo real da vontade da sociedade, muito mais do que isso, o fato de as mulheres exercerem posições de chefia e de poder está ligado umbilicalmente ao combate à corrupção.

A batalha contra a corrupção sempre trouxe muitas expectativas e poucos resultados, demonstrando uma falência massiva das políticas públicas nessa seara.

Este mal social enfrenta seus programas de combate, tornando-os inócuos.

Qual seria o oposto de um governo corrupto? Um governo de qualidade baseado na ideia de imparcialidade (Bo Rothstein), a qual se alcança por meio do recrutamento por mérito e promoções na administração pública. E, então, nesse panorama, encontramos a igualdade de gênero.

À primeira vista, este argumento parece algo sem sentidos e uma desesperada bravata feminista na ânsia de preencher maior número de cadeiras pelo mundo, entretanto, feliz ou infelizmente, comprovadamente, o trabalho exercido pelas mulheres é muito mais hígido, comprometido e imaculado

A corrupção não é um problema atinente aos países em desenvolvimento, ao contrário, é global e nefasto em todos os sentidos. O povo morre de corrupção (Holmberg e Rothstein).

Assim como os programas de inclusão social vêm dando pouco resultados, as medidas de combate à corrupção seguem o mesmo andar, e o mais interessante é que promovendo uma ou outra, se está matando, ou ao menos, tentando matar um problema com uma cajadada só.

Existem inúmeras razões para chegar a esse entendimento, sejam elas empírica ou cientificamente comprovadas, o fato é que, dentre elas, sabemos que, de longe, a maior parte da população carcerárea é constituída por homens; aliás, a carreira pela senda do crime feminina é curta e os crimes, normalmente, de menor potencial ofensivo; as networks masculinas excluem as mulheres da sua esfera política de poder, as quais, por vezes são o berço das transações ilícitas; as mulheres são mais próximas da família e têm menos oportunidades de se engajarem na corrupção; mulheres evitam riscos e se preocupam com os demais e, ainda, quando as mulheres assumem uma posição política, seu poder tem frequentemente como esteio a sociedade civil, de modo que elas acabam por não tenderem a arriscar essa relação de confiança.

Há, sim, um ponto de encontro entre os dois dilemas, a falta de mulheres faz com quem a tomada de decisões não seja imparcial e a ausência de imparcialidade leva tanto à desigualdade de gênero como à corrupção, ou seja, trata-se de um círculo vicioso.

Do curso de verão promovido pela IACA (International Anti-corruption Academy) que tive a honra de participar, pude extrair que há cinco instrumentos aptos a produzir governos de qualidade: tributação para todos, educação universal, sistema de auditoria profissional e comunicativo, meritocracia no serviço público e igualdade de gênero.

Temos muito o que progredir para alcançar este ideal, todavia, na agenda, temos que a igualdade e a inclusão das mulheres em cargos de poder é crucial para darmos esse salto de progresso.

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