O desembargador mineiro Doorgal Gustavo Borges de Andrada acaba de chegar de mais uma missão no exterior. Atuou como voluntário do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em Moçambique,  país pobre de 25 milhões de habitantes e localizado no Sudeste africano. Uma experiência enriquecedora para o magistrado de 55 anos, que já foi delegado, promotor, professor e é membro da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Doorgal diz que a estrutura judiciária de Moçambique ainda é precária, há carência de juízes e de servidores capacitados. Existe também dependência do Judiciário em relação ao Executivo, e convive-se com momentos de desrespeito aos direitos humanos, mais especificamente aos direitos das mulheres, que é forte e impressiona. Diferentemente do Brasil, em Moçambique, os processos são julgados por três juízes, dois deles comunitários, leigos. Os processos relacionados ao Direito Administrativo são analisados em uma instância separada do Judiciário, nos tribunais administrativos.  Somente agora, o país que enfrentou uma severa e cruel guerra civil por quase duas décadas começa a estruturar seus tribunais de Justiça -- tem apenas três em funcionamento. Ainda há fortes denúncias de corrupção em geral. Problemas semelhantes foram encontrados no Timor-Leste, em 2012, em outra missão.  Agora, o magistrado espera a próxima empreitada. “Essas experiências só nos engrandecem. Aprecio o ensinamento do poeta Fernando Pessoa: ‘Tudo vale a pena quando a alma não é pequena’”, diz. Leia a seguir a íntegra da entrevista de Doorgal Andrada, que faz parte a Secretaria Legislativa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

 

O senhor acabou de chegar de uma missão em Moçambique, um país extremamente pobre, com 25 milhões de habitantes. Gostaria de saber como foi essa experiência, o que senhor desenvolveu nessa área jurídica, de direitos humanos...

A participação nessas missões como voluntário visa apoiar, fortalecer, trocar ideias e contribuir de todas formas para o aprimoramento do Judiciário do país que está sendo socorrido. No caso de Moçambique, por meio da convivência com os juízes e nos tribunais, o trabalho foi de  mostrar o que o Brasil tem de bom na área jurídica para que eles possam aprimorar o Judiciário local. De outro lado, vivi experiências muito interessantes. Primeiro, ao contrário do que a gente supõe, imagina e acredita ser, a forma de se fazer justiça e de se entender o que é o correto e justo não é apenas aquela que a nossa cultura imagina como certa. Em segundo, a estrutura judiciária, sobretudo de Moçambique, foge um pouco do entendimento imediato deles sobre o que é o Judiciário.

 

Por que?

Porque eles têm o foco, assim como nós, brasileiros, no Direito Romano e revivem um pouco da estrutura judiciária portuguesa e francesa. Só que isso estabelece certa superposição de valores. Por exemplo, a poligamia, que é vista com um choque entre nós, é prática normal, comum e aceita por eles. Mas, para nós, e as regras legais deles que se dizem de maioria cristão, não se admite o casamento além da monogamia. A poligamia não é acolhida pela lei, mas tal prática costumeira existe sobretudo no interior do país. Nas cidades maiores, eles estão podando esse costume e  tradição.

Como o Judiciário lida com isso?

Para o Judiciário, elas não são consideradas esposas, pois a lei aceita apenas uma mulher do casal. Isso na realidade cria um conflito no direito sucessório e para a meeira.  Muitas pessoas estando mudando a forma de pensar, sobretudo na capital, Maputo, e já acham a poligamia abominável, pré-histórico. Apenas para lembrar, na África do Sul, país vizinho e que faz parte dos Brics (grupo de países emergentes), o presidente da República tem sete esposas.

Então existe um conflito entre a lei e a realidade?

Sim, entendo que muitos temas ainda não estão bem resolvidos.

Moçambique tem pouco mais de 200 juízes. A proporção é um juiz para cada 90 mil habitantes, enquanto que no Brasil é um magistrado para cada 11 mil habitantes. Qual o impacto disso para a população?

Faltam juízes. E, como aqui, muitos deles não querem ir para as cidades pequenas do interior, porque nelas a defasagem material e social é muito grande. Com isso, muitas regiões do interior do país não têm juízes, os prédios da Justiça não são bons e os funcionários não são preparados. Sequer alguns funcionários tem curso médio. Este é um drama da realidade do Judiciário.

 

É verdade que, em função disso, as pessoas recorrem pouco ao Judiciário?

Sim, mas também devido à desinformação e ao excesso de pobreza.

 

Não é em Moçambique que existem os juízes de aldeia?

Vi duas coisas curiosas. Todos os processos são julgados por três juízes e só um deles é concursado, formado em direito. Os outros dois são juízes da comunidade, leigos, nomeados por indicação política, mas as entidades representativas da sociedade são ouvidas durante essa escolha. Então,  quando se julga, os dois leigos podem discordar do juiz togado.  É raro, mas a lei permite isso.  Aqui na Justiça do trabalho, de certa forma, foi assim também com os vogais. Tínhamos o juiz togado e dois classistas. Existe outra estrutura curiosa, herdada da colonização portuguesa, que é a existência dos régulos (pequenos administradores) nas aldeias e vilas. Antigamente, eles tinham poderes quase que amplos, como um pequeno rei local, pois a administração portuguesa não tinha condições de ter funcionário para preencher todo o território. Dessa forma, nomeava-se os régulos para chefiar as vilas e aldeias em nome do governo português.

 

Então são escolhidos por indicação política?

Os juízes da comunidade são, e eles ficam cinco ou seis anos no cargo. Os juízes togados nem sabem como foram escolhidos e, quando chegam às comarcas, os dois já estão lá trabalhando. Conversei com magistrados que acham válido trabalhar com os juízes da comunidade, e creio que isso tem a ver com a realidade e com dinâmica do dia a dia.  Moçambique tem sete províncias, todas com vários dialetos diferentes. A língua que une o país é o português. Então, a maioria dos juízes togados aplaude os juízes da comunidade porque são eles que vão mostrar a realidade que ali se vive. Nas audiências, não raro necessitam de intérpretes. Os régulos não integram o Poder Judiciário.

É como um advogado leigo?

Não. O régulo tinha um papel múltiplo, de juiz, de administrador da cidade, de legislador, tal como um mini-rei.  Mas o perfil do régulo mudou  e hoje continua tal como um juiz de paz no Brasil.  Porém, em geral, antes de ir à Justiça, ele costuma conciliar ou mediar acordos com as partes,  como se fosse uma autoridade, e isto ameniza muito as  contendas menores e rotineiras. E há aqueles dois juízes comunitários que atuam também informalmente na cidade, ao lado da sua atividade formal de juiz no fórum. Eles não precisam ser formados em direito.

As várias etnias e tribos têm costumes diferentes, mas a Constituição é soberana. Se um juiz chega numa determinada cidade de influência de certa etnia, como ele resolve esse conflito entre a realidade e o que diz a lei?

Eles procuram dar a interpretação jurídica que se adeque mais à realidade daquela etnia.  Por isso, senti que todos os juízes togados querem ter ao seu lado os juízes comunitários. Preferem não ferir demais a tradição, o costume regional ou local. Como a legislação é estranha – formatada no direito romano e português -, sua prática às vezes afeta muito as comunidades. Sob esta realidade, entendo também que os juízes comunitários, embora leigos, têm um papel muito significativo para o Judiciário de Moçambique.

 

Como é a estrutura do Judiciário em Moçambique?

Como nós, eles têm divisões, como as comarcas, sempre com três juízes no mínimo. Mas a estrutura é tão carente que, somente no ano passado, os tribunais de Justiça foram implantados em número de três. Um na região Norte, outro na Central e outro no Sul.  O do Sul já funciona em um edifício na capital, Maputo. Porém os da região Central e Norte não existem fisicamente e funcionam provisoriamente em Maputo.  Então, na prática, os advogados têm de andar 600 a 900 km para chegar à capital e despachar com um desembargador daquele tribunal que funciona mas não foi instalado.  Tem também o Tribunal Administrativo, algo que nunca existiu no Brasil. Trata-se de cópia do modelo europeu para decidir todas as questões relacionadas ao Direito Administrativo, ao serviço público, licitações. Elas não vão para o Judiciário, mas para o Tribunal Administrativo – órgão estranho ao Judiciário -,  cuja decisão não pode ser contestada ou rediscutida na Justiça.

 

Mas essas decisões são deferidas por juízes?

Não. Na verdade, eles não fazem parte do Poder Judiciário tal como é na França e em Portugal.

 

Os juízes de Moçambique ingressam na carreira por meio de concurso público?

Sim, necessitam de aprovação em concurso como aqui no Brasil. Lembro-me que ficaram assustados quando eu disse que no Brasil não existe Tribunal Administrativo e que as matérias relacionadas ao Direito Administrativo somos nós, juízes, que julgamos. É que eles têm a compreensão jurídica europeia de que o direito voltado à área administrativa, afeita ao Poder Executivo e à gestão de atos públicos, seria de menor importância e deve ficar alheia ao Poder  Judiciário, decidido por um órgão público isento, mas da própria administração.

Qual a diferença que mais lhe chamou a atenção em relação ao Judiciário de Moçambique e do Brasil?

Não vi a utilização da ação civil pública como aqui, e eles acabaram de aprovar a Lei de Improbidade Administrativa.  Percebi que ainda têm grande deficiência na área de investigação penal, o que é bem próprio dos países mais carentes e das nações novas.  Senti também certa dependência do Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo, no que diz respeito à autonomia financeira.  Confesso que fiquei perplexo ao ver em cada gabinete de juiz uma foto do presidente da República, o que talvez pode demonstrar forte viés político administrativo inserido nos  poderes.

A gente pode então dizer que os poderes não são independentes?

Não são totalmente independentes porque se constata que a gestão financeira não está totalmente separada do Poder Executivo, tal como sempre ocorreu entre nós até a aprovação da Constituição de 1988.

 

Isso certamente impacta nas decisões?

Creio que sim, e muito, sobretudo porque o país é novo e pobre.

Dessa experiência toda, qual a conclusão que o senhor tira e qual a importância dessas informações?

Tentei demonstrar de alguma forma, nesses três meses de trabalho, o funcionamento do Judiciário brasileiro e comparar com o que eles de falho.  Sempre mostraram muito interesse em avançar nesta questão da improbidade. Percebe-se que em muitos países africanos,  ante a pobreza e a pouca cultura, que  a corrupção infelizmente é muito forte.  Então, a recém-aprovada Lei de Improbidade está sendo muito procurada e falada por lá no meio jurídico.  Também aprende-se muito com esse tipo de trabalho, pois você acaba percebendo que o ser humano tem sentimentos e versões de justiça que não são apenas as existentes no nosso país, e com as nossas leis. Isso te dá um crescimento profissional, uma grande maturidade jurídica e social, e até nos provoca certos questionamentos internos válidos sobre a aplicação da lei. Uma grande soma de experiência no campo humanitário.

Quais os dramas e histórias que mais impressionaram o senhor?

Eles viveram uma cruel guerra civil de 1975 a 1992, que dividiu o país em dois grupos fortemente armados em busca do poder.  Claro que isso deixou dor e marcas em todas as famílias de Moçambique. Calcula-se que um milhão de pessoas morreram nessa guerra civil que acabou apenas 20 anos atrás.  Então esse assunto ainda rege os caminhos da vida política do país e nem seria diferente, pois muitos dos que estão no poder e nos postos de trabalho privado viveram tal violência.  Nós, no Brasil, nunca vivenciamos uma guerra civil.  Mas hoje as pessoas que no passado tinham posições opostas convivem bem, se superando. Todos se esforçam e ninguém quer falar de revanche ou punição sobre a crueldade que  ocorreu entre os dois lados, no passado. Na verdade, houve um acordo de paz e anistia mediado pela Igreja Católica assinado em Roma e os dois grupos militares transformaram-se em partidos políticos. Um deles vem se mantendo no poder há 20 anos, a Frelimo, e o outro, a Renamo, na oposição. Os dois movimentos baixaram guarda, mas neste período em que estive lá, em 2014, a Renamo reiniciou a guerra civil praticando a grande violência armada no centro do país, bloqueando estradas e esse conflito iria crescer. Porém, como estava marcada a eleição presidencial para outubro, o governo da Frelimo e a oposição, depois de muita discussão, chegaram a um entendimento e a um novo o acordo de paz, um mês antes das eleições.  No fundo, trata-se de um povo sofrido e cansado de guerras, que se manifesta amplamente contra ela e  qualquer tipo de revanche ou revisão.

O senhor pode fazer um breve resumo do seu relatório final ?

Vou apontar e identificar os estrangulamentos que, na minha visão, estão dificultando um melhor funcionamento do Judiciário naquele país. Por exemplo, vejo a necessidade de bons assessores qualificados para cada juiz. Há também a dependência do Judiciário com o Executivo, financeiramente, que é um grave problema jurídico-estrutural.  E de outro lado, existe forte indisposição no que tange à necessidade de aumentar o quadro de juízes, melhorar a estrutura material e de pessoal do Judiciário.

 

Qual a diferença da missão no Timor-Leste a agora em Moçambique?

Moçambique, como eu disse, terminou sua guerra civil faz 20 anos, mas percebi que é um país bem mais estruturado e com muito mais riqueza natural do que o Timor-Leste. Quando estive no Timor-Leste em 2012, havia 10 anos que eles tinham saído de uma terrível guerra de 25 anos contra os indonésios.  Muitos prédios ainda estavam destruídos ou em péssimas condições e não existia número de juízes suficiente para a demanda do país. Os magistrados eram – na maioria - contratados da Justiça de Portugal. Então, estavam do Judiciário de Portugal, diferentemente de Moçambique.

 

E a questão do respeito aos direitos humanos?

O desrespeito, no meu entendimento, ocorre tanto em um país como no outro, se compararmos com os valores da vida no ocidente. Em ambos os países, as mulheres é que fazem o trabalho rural e doméstico, ou seja, são elas que trabalham de sol a sol, sem descanso.  Curiosamente nos dois países a criminalidade não é elevada, e eles ficam até muito assustados e com medo do que ocorre no Brasil. Na verdade, eles viveram as suas guerras cruéis, mas que no fundo era disputa de poder, o que difere de violência criminal.  No Timor-Leste, tem um agravante em face da cultura e tradição de séculos com uma forma cruel contra as mulheres, que permite aos pais e aos avós tratarem as filhas e netas com violência sexual.  Isto é um costume antigo e o  estupro ocorre  dentro das casas, com muita naturalidade.

E não se pune esse tipo de crime?

Agora o país está punindo essa conduta, pois em 2002 o Timor-Leste  tornou-se independente, expulsou os indonésios com a ajuda da ONU e,  poucos anos depois, o Parlamento local aprovou um novo  Código Penal. Com isso, criminalizou-se o estupro. Hoje, portanto, a maior dificuldade é fazer com que as mulheres levem essas denúncias à polícia ou à Justiça.

 

Esses casos não chegam à polícia?

Muito pouco.  Além da questão do receio e do medo, ainda não existe uma ampla consciência de que isso é errado, pois faz parte da tradição da vida familiar.  Mas essa questão está sendo amplamente trabalhada pela mídia local, escolas, igrejas, pela polícia e pelos órgãos de apoio e defesa das mulheres.  Creio que estão superando a fase de entender que isso é errado.

E em Moçambique, que tipo de desrespeito de direitos humanos lhe chamou a atenção?

Também o excesso de trabalho das mulheres no interior do país. São elas que plantam, que cuidam dos filhos, da casa... E os homens ficam comandando e observando.  Na capital, você não vê essa exploração com tanta intensidade. No entanto, isto é cultural e não é compreendido da forma como nós ocidentais avaliamos.

Qual a sua próxima missão?

Entendo que trabalhar em países ricos, iguais ou superiores ao nosso, de certa forma, você repete um pouco do que se vive aqui.  Prefiro conviver com o que ainda está para ser melhorado e assim somar e contribuir. Ao meu sentir, isso realiza bem mais o sentimento de colaboração. Mas devo fazer um parêntese. Antes de ir para o Timor-Leste em 2012, eu consegui em 2006 uma bolsa de estudo  para a Universidade do Texas onde por 11 meses fiquei morando naquele que é o segundo mais rico estado dos Estados Unidos. Na época, o PIB do Texas era maior que o do Brasil. Tudo lá é muito interessante e diferente, mas tudo belo, pronto e acabado. Você observa que as ruas das cidades são vazias, a vida funciona muito bem e disciplinadamente, como deve ser. São locais ideais para férias ou para se viver por opção. Mas você não tem a oportunidade de colaborar e ver o crescimento vibrante e as mudanças, as vezes o sacrifício pelo desenvolvimento, como é a luta de um  povo por uma vida melhor.  Claro que os EUA também passaram por esta fase e venceram, mas isso foi no século XIX.

Então, o senhor diria que as missões na África e na Ásia foram mais engrandecedoras?

Sim. Não tenho dúvidas quanto a isso.

 

E já tem uma próxima missão ?

Digo que não escolho lugar. Se surgir alguma outra, estou pronto.  Mas nisso tudo eu tenho uma pequena curiosidade a registrar: no Texas, um susto que eu levei foi saber que os juízes são eleitos pelo povo.  E, ao falar com os advogados e juízes de lá como era a regra do concurso aqui no Brasil, eles perguntaram surpresos como é que nós temos coragem de colocar como titular de um poder (o juiz), que irá exercer uma parcela da soberania popular, alguém que não tinha tido apoio na população?  No sistema do Texas, os juízes têm um mandato fixo e somente podem disputar a eleição quem for advogado.  Ocorre que essa eleição para juiz não motiva a sociedade, e nem 10% da população comparece para votar.  Dos 50 estados, cerca de 20 fazem eleição para juiz e desembargador, e, nos demais, ou eles são escolhidos pelo governador ou pela assembleia legislativa. O concurso público não é forma e entrada no Judiciário, pois sempre haverá a participação política popular na escolha do juiz e desembargador, seja de forma direta (eleição) ou indireta via nomeação do Legislativo ou do Executivo. De outro lado, o presidente da República  nomeia, ao seu bel-prazer, todos os juízes federais, e estes têm cargos vitalícios.

 

Márcia Delgado

Simone Caldas

 

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